ESPIRITUALIDADE

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Espiritualidade, ética e moral

De uns tempos para cá, temos sido atropelados por uma infinidade de temas sérios que atingem e comprometem toda a sociedade, e que se agravam a cada dia apesar das tentativas de contê-los. Corrupção, violência, imoralidade, miséria e pobreza, prostituição infantil e abusos sexuais, drogas e alcoolismo, são alguns destes temas. Sempre que surge um novo escândalo em qualquer uma dessas áreas, educadores protestam contra a falta de investimento na educação, psicólogos analisam o comportamento das pessoas, sociólogos estudam o efeito das mudanças na civilização, políticos nomeiam comissões e jornalistas noticiam, cada um buscando alternativas para uma realidade que cresce e perturba os mais acomodados. 

A civilização ocidental foi moldada pela tradição cristã, que tem nos mandamentos divinos sua base ética e moral. Durante séculos, o temor a Deus e a consciência de dever para com seus mandamentos moldaram o caráter não só dos cristãos, mas de toda a sociedade. Porém, vivemos hoje uma rejeição a qualquer norma ou princípio que venha de fora. Toda a possibilidade de se estabelecer fronteiras, limites, bem como a idéia de “autoridade”, perturbam as mentes mais pacíficas. Cada um — e não Deus — elabora suas próprias normas e define a forma como irá viver. 

A rejeição moderna aos mandamentos de Deus tem suas raízes no secularismo materialista e narcisista. A intensificação do individualismo, a busca pela auto-realização, tem levado muitos, inclusive cristãos, a criarem um mundo exclusivo onde o sentir-se bem é o valor supremo, e, neste mundo, os mandamentos e o temor a Deus têm de desaparecer. Em nome da liberdade vamos nos tornando mais tolerantes, uma vez que os interesses pessoais se sobrepõem aos mandamentos divinos. 

A tendência moderna de rejeição aos mandamentos seria percebida de forma insuficiente se não considerássemos o conflito que se encontra por trás dela: a negação de Deus e a assumida autonomia humana. É assim que o salmista descreve esta realidade: “Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o Senhor e contra o seu Ungido, dizendo: Rompamos os laços e sacudamos de nós as suas algemas” (Sl 2.2-3). Este é o horizonte maior sobre o qual nossos olhos devem se concentrar. 

Se olharmos a Palavra de Deus com este tema em mente, ficaremos surpresos ao perceber sua relevância e importância tanto para a espiritualidade pessoal como para a moral e ética de uma sociedade. Os mandamentos revelam o amor e cuidado de Deus por suas criaturas; eles foram dados depois que Deus os libertou da escravidão — “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da casa da servidão” (Êx 20.2). E nossa obediência a eles revela também nosso amor por ele — “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; assim como também eu tenho guardado os mandamentos do meu Pai, e no seu amor permaneço” (Jo 15.10). Além de estabelecer este relacionamento pessoal, eles constituem o fundamento da ética e da moral, que, em outras palavras, é a forma como nos relacionamos com um profundo senso de respeito e amor para com o próximo. A espiritualidade pessoal requer um compromisso ético e moral. 

As propostas de educadores, psicólogos e tantos outros profissionais que se interessam pela solução dos grandes temas nacionais têm seu valor; mas a atitude consciente ou não de rompimento com os mandamentos divinos encontra-se na base destes grandes temas. Nossos olhos já não estão mais voltados exclusivamente para Deus em adoração e obediência; banalizamos o seu nome; atropelamos o tempo e não celebramos o descanso como expressão da confiança na providência divina; não damos mais a honra devida aos pais e aos idosos; matamos e destruímos a dignidade do outro com palavras e gestos; perdemos a capacidade de permanecer fiéis, de nos contentar com o que temos, de fazer da nossa palavra um testamento e não desejar nada que não seja nosso. 

Por trás de cada ato de violência, corrupção ou imoralidade está, muito antes das deficiências na educação ou dos distúrbios de comportamento, a quebra de um mandamento. Alguns buscam uma espiritualidade sem ética ou moral; outros, uma ética e moral sem espiritualidade. Porém as duas precisam andar sempre juntas. 


Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.

 

 

 

 

 

 

 

 

Tradicional, conservador e ortodoxo

Houve um tempo, quando eu era jovem, que rejeitava qualquer coisa que me identificasse como tradicional. Naquela época, ser tradicional significava não ser pentecostal. Os tradicionais eram solenes, reservados. Já os pentecostais eram alegres, empolgados com a fé, espontâneos, exuberantes. Eu não me considerava pentecostal — não no sentido clássico do termo —, mas também não era tradicional.

Hoje confesso que sou tradicional. Não perdi a alegria e o entusiasmo que aprendi com os pentecostais, mas agora não ser tradicional é ser moderno, que significa romper com a história, não ter raízes, nem tradição. Gosto do meu passado, gosto de cantar os velhos hinos como “Rude Cruz”, de ouvir pregações com conteúdo teológico, centradas nas Escrituras e que dispensam o personalismo narcisista dos pregadores modernos. Chego a gostar de uma certa solenidade e reverência no culto. Gosto de saber que a fé que professo foi professada por muitos que viveram antes de mim e que a proclamaram sob muito sofrimento. Não gosto das inovações que vejo por aí, da agitação nos cultos, das coreografias com tules esvoaçantes que não dizem nada; músicas que não inspiram, apenas agitam; pregações de auto-ajuda.

Na minha juventude, ser conservador era comprometer-se com a direita, apoiar ditaduras totalitárias, resistir às mudanças, apoiar o machismo decadente. Não ser conservador era ser revolucionário, e era isto que eu queria ser. Naquele tempo participei dos movimentos pela volta da democracia, do envolvimento da igreja nos temas políticos e sociais, abracei a teologia da missão integral e vi, com alegria, a igreja e o país mudando. Ainda guardo comigo este espírito revolucionário.

Mas hoje o oposto ao conservador é o liberal que abriu mão dos valores morais, das verdades teológicas e do temor a Deus. A vulgarização e a banalização do corpo e do sexo, a desvalorização da família e essa imensa e indefinida “abertura” que vivemos em nada têm contribuído para a sociedade. Toda a luta das mulheres contra a opressão e a exploração do corpo como objeto sexual acabouem um grande mercado erótico de ofertas bizarras. A disciplina e a educação dos filhos foi abandonada pelos pais, delegada para as escolas e depois para as clínicas psicológicas. A intensificação do individualismo requer, cada vez mais, o direito a toda forma de promiscuidade. Sou hoje um conservador. Ainda luto contra as injustiças, mas não me identifico com o espírito liberal dos tempos modernos. Continuo crendo na sacralidade do corpo como templo do Espírito Santo, no sexo como expressão sublime do amor na aliança conjugal. Permaneço convencido de que a família é o espaço criado pela providência divina onde aprendemos a viver comunitariamente. Creio na contemporaneidade de todos os mandamentos de Deus e no seu poder de preservar a sociedade da autodestruição. 

Por fim, vejo também que hoje sou ortodoxo na minha fé e teologia. Nunca fui liberal, nem fundamentalista; sempre me considerei um evangelical. Porém, diante da nova onda de fundamentalismo, não apenas o religioso, mas, principalmente, o fundamentalismo totalitário neoliberal, que, em nome de uma pseudo-abertura, impõe sua agenda moral e religiosa que não aceita questionamentos, preciso dizer que sou hoje um evangelical ortodoxo. Minha fé continua alicerçada na autoridade das Escrituras Sagradas, no Credo Apostólico, nas confissões históricas e na longa tradição cristã. Creio na morte e ressurreição de Cristo, na sua mediação entre Deus e os homens e que fora dele não há salvação. Creio na autoridade da Bíblia como revelação de Deus e dos seus propósitos. Creio na absoluta soberania divina, e me silencio diante do seu mistério. E creio na igreja, apesar das suas crises e conflitos. É assim que me vejo hoje. Tradicional, conservador e ortodoxo. 

A recomendação de Paulo aos crentes de Tessalônica é muito apropriada para estes dias confusos que vivemos: “Portanto, irmãos, permaneçam firmes e apeguem-se às tradições que lhes foram ensinadas, quer de viva voz, quer por carta nossa” (2 Ts 2.15). 


• Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.

 

Ed. 305 - O Jesus imatável
A morte de Cristo não foi imposta nem acidental, mas voluntária e vicária. Ainda nesta edição, o verdadeiro propósito da Semana Santa: a paixão e a ressurreição de Cristo.

Período: Março-Abril 2007
Páginas: 68

A oração e o retrato do caráter

Tenho visto, com muita freqüência, crentes orando por vagas em estacionamento, de preferência uma bem em frente à loja que precisam ir, ou clamando fervorosamente para que não chova no dia do casamento ou aniversário planejado para acontecer num espaço aberto. Ouço pais pedindo oração para que Deus dê uma força para que o filho que nunca foi de estudar muito passe no vestibular ou num concurso público; ouço também crentes expressando sua gratidão a Deus por terem conseguido furar uma fila, ou vender um carro batido sem que o comprador percebesse.

Orações assim são comuns em nossas igrejas. Contudo, quando reconhecemos que a oração é um meio de relacionamento, ela nos oferece um duplo retrato: de Deus e de quem ora. A oração tem um papel importante no relacionamento entre o homem e Deus, pintando tanto o caráter humano como o divino. O que falamos para Deus (súplica, gratidão, louvor, desejos e situações da vida) revelam nossas motivações, nossa moral e nosso caráter. Da mesma forma, algumas afirmações que fazemos sobre Deus na oração (amoroso, justo, misericordioso, soberano) revelam convicções sobre a natureza divina.

Nem sempre nossa compreensão sobre quem é Deus revela a verdadeira natureza divina. Por exemplo, Deus se revela como um Deus justo e reto e nós o experimentamos como um Deus caprichoso e vingativo; Deus se revela como um Deus sempre presente mesmo em meio ao sofrimento, e nós o experimentamos como um Deus ausente ou distante. O retrato que fazemos de Deus certamente não é mais importante do que o retrato que Deus faz de si mesmo. A percepção humana de Deus precisa sempre ser corrigida e transformada pela auto-revelação de Deus nas Escrituras. E nossas orações quase sempre revelam também a natureza de nosso caráter. Por isso a oração é não apenas um meio de relacionamento, mas também um caminho de transformação.

Elias foi reconhecido como um homem de Deus e Ezequias, como um rei fiel. O caráter de ambos foi afirmado pela oração e pela confiança em Deus em momentos de crise. Em cada caso, suas orações foram apresentadas de acordo com a situação vivida, e deram uma definição do caráter deles. Eles oravam da forma como agiam, seus atos não contradiziam suas palavras. Da mesma forma, as orações de Paulo que encontramos em suas cartas, também revelam seu caráter e sua teologia. Basta um olhar atencioso para vermos em Paulo um coração pastoral, comunitário, resignado e entregue a Deus e ao seu povo, bem como um Deus que é o Soberano Senhor, que se revela a nós por meio do seu Filho e que voltará em glória e majestade.

A oração pinta um retrato de Deus e de quem ora. Se prestarmos atenção na forma e conteúdo da oração, seja aquela que fazemos na igreja, publicamente ou em grupo, ou a que fazemos sozinhos no quarto, teremos um retrato muito fiel e real da igreja, nosso e daquilo que pensamos sobre Deus e sobre seu propósito para a igreja e o mundo.

Provavelmente os pais que oram para que Deus dê uma mãozinha para que o filho preguiçoso passe no vestibular negam em suas orações o caráter justo de Deus, e se revelam também como pessoas que pouco se importam com a justiça. Tornam-se capazes de atribuir a Deus a “bênção” de um negócio ilícito. E orações suplicando a Deus para que não chova apenas para não estragar a festa ou o penteado, as férias na praia ou o churrasco no sábado, revelam o caráter egoísta de quem ora e a concepção de um Deus que não passa de um mágico cósmico.

Se queremos saber quem somos, o que pensamos sobre Deus, quais são nossas motivações primárias e a raiz do nosso caráter, basta um olhar honesto para a nossa vida de oração, que revela tanto a teologia como a antropologia. Porém, a oração não apenas revela as distorções antropológicas e teológicas, mas também é a forma e o caminho para corrigir essas distorções. Pior do que orar errado é não orar. Enquanto permanecemos orando, temos a chance de ver nossa compreensão de Deus e de nós mesmos sendo transformadas.

Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.

 

Ed. 304 - A morte da morte
A matéria de capa da presente edição é dedicada a todos os que ficaram órfãos, desfilhados e viúvos no maior acidente aéreo da história do Brasil. Tristeza da morte e esperança da ressurreição do corpo

Período: Janeiro-Fevereiro 2007
Páginas: 68

 

Suficiente graça

Recentemente, eu e minha esposa reencontramos uma velha amiga que não víamos há algum tempo. Ela se submetera a uma cirurgia plástica que lhe fez muito bem. Estava alegre, falante, bem-humorada e mais disposta. Por muitos anos ela tinha sido uma pessoa complexada, bastante confusa em seus relacionamentos, mal-humorada, amarga e hostil, provavelmente em virtude de sua baixa auto-estima e de seu profundo sentimento de rejeição. Ficamos felizes ao vê-la bem.

Voltando para casa fiquei pensando no poder que a tecnologia tem para transformar as pessoas. Não pensei no poder de transformar o corpo, dar nova forma à estética ou corrigir anomalias, mas no poder de transformar a vida, os relacionamentos, a auto-imagem, as emoções e os sentimentos. Os recursos tecnológicos dos quais dispomos hoje têm este poder. São capazes de realizar sonhos que seriam impossíveis em outros tempos. E me refiro não apenas à cirurgia plástica, mas também a muitos outros recursos.

O que aconteceu com nossa amiga foi muito bom, mas fiquei me perguntando: Qual o sentido da graça de Deus numa sociedade tecnológica? Cresce, cada dia mais, a sensação de que aquilo de que necessitamos para a realização pessoal, felicidade ou segurança, não é mais a graça de Deus e seu amor revelado em Cristo Jesus, mas o acesso aos meios que nos garantirão a realização dos nossos sonhos. Parece-me que a linha que separa uma coisa da outra é estreita e cada vez mais confusa.

Imagino que para muitos cristãos pós-modernos a graça de Deus funcione como um facilitador, uma espécie de trampolim, o empurrão de que precisamos, mas ela, em si mesma, não é o que nos satisfaz ou realiza. Ela, em si, não é suficiente, não basta. Já não somos capazes de reconhecer, como Paulo, que a graça de Deus é suficiente.

Não pretendo protestar contra as vantagens que a moderna tecnologia nos oferece, embora muitas delas possam ser questionadas; minha intenção é voltar os olhos para a suficiência da graça de Deus e redescobrir seu significado hoje. Afirmar que a graça é suficiente, que ela, por si só, satisfaz plenamente o ser humano, é reconhecer a suficiência do amor de Deus revelado em Cristo. Quando Davi declara no Salmo 23: “O Senhor é o meu pastor e nada me faltará”, ele está reconhecendo a suficiência da graça de Deus. Certamente muita coisa falta na vida de Davi, mas ele reconhece que, tendo o Senhor como seu pastor, não lhe falta absolutamente nada.

Paulo escrevendo aos filipenses também reconhece: “Aprendi a viver contente em toda e qualquer situação. Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4.11-13).
A questão que quero levantar não é se devemos ou não usar os recursos tecnológicos, mas qual é a fonte de nosso contentamento. Por que já não somos capazes de viver contentes em qualquer circunstância? Por que nossa felicidade depende tanto do dinheiro e do consumo? Por que ficamos freqüentemente tristes ou frustrados por não ter o que os outros têm? Ou por nos acharmos fisicamente inadequados? Um dos sinais da vida que nasce da fé em Cristo é a alegria ou o contentamento que surgem da compreensão e aceitação do amor gracioso de Jesus Cristo.

Tenho certeza de que, no dia em que compreendermos o grande amor com que temos sido amados por Deus, a dádiva do perdão e da reconciliação, nossa participação na ressurreição de Cristo, o significado de termos sido aceitos como filhos e filhas amados de Deus, incluídos na comunhão e amizade eterna que Pai, Filho e Espírito Santo gozam, nossa realização, gozo e satisfação não mais serão determinados pelos ganhos que o mundo tecnológico nos oferece, nem mesmo pela realização de nossos sonhos, mas pela suficiente graça de Deus. Então poderemos dizer como Paulo: “Pela graça de Deus, sou o que sou”.


Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.

 

Ed. 303 - Adultério duplo
Ultimato publica nesta edição uma série de textos sobre o adultério, incluindo a triste história de Davi. Também questiona a obsessão por sexo que marca os dias de hoje e a indústria do sexo, que movimenta bilhões de dólares todos os anos no mundo. Uma conversa franca e cristã sobre o tema.

Período: Novembro-Dezembro 2006
Páginas: 68

 

 

Colunas — O caminho do coração

O espírito democrático e a espiritualidade cristã

 

A democracia na civilização pós-moderna vem se ajustando a novas formas e conceitos. Ela não está mais limitada apenas à esfera política e às relações entre o povo e seu governo, mas vem se expandindo em todas as esferas de relacionamentos. Ser democrático é saber respeitar e acolher as diferenças; não impor nenhuma forma de pensamento ou conceito; não ser absoluto em nenhuma afirmação; não exercer nenhum tipo de autoridade ou exigir qualquer forma de fidelidade. A nova democracia vem deixando de lado sua relação histórica com as grandes verdades públicas para se identificar com as opções privadas. 

Na sociedade pós-moderna cada um quer ter garantido seu direito à privacidade. Este é o grande valor da democracia hoje. Isso significa, não apenas que podemos escolher a forma de governo, mas sobretudo a forma como iremos viver (e isto não diz respeito a mais ninguém, apenas a mim). Cada um escolhe o que quer, como quer e quando quer. Isso significa que podemos escolher também um deus e uma forma particular de viver a fé que seja só minha e sobre a qual eu não tenha de dar satisfação a ninguém.
Enquanto a democracia permanece circunscrita ao terreno das grandes questões públicas, dando forma ao Estado e às relações entre os poderes constituídos, ela permanece como um modelo político que garante a liberdade e a soberania de um povo e uma nação. No entanto, quando ela se reduz a este espírito democrático individualista, acaba promovendo uma espécie de zoológico social, cuja liberdade só se dá na jaula em que cada um vive sua privacidade. Com isso, privamos a sociedade das bênçãos da vida comunitária. O que aconteceria se permitíssemos que nossos filhos aprendessem na escola que 2+2=5 ou que a lei da gravidade é um conceito relativo que depende da fé de cada um? Esses conceitos não são privados, e dependemos deles para a nossa segurança. A bênção do conhecimento nunca foi um privilégio restrito aos cientistas, mas compartilhada com toda a raça humana. Contudo, por causa desde espírito democrático individualista, somos tentados a pensar que a revelação de Deus, seus propósitos para o ser humano e para toda a criação, os mandamentos espirituais e morais, são privados e não devem ser compartilhados com a sociedade, mas cultivados apenas na jaula religiosa de cada um. 

Porém, nada é mais social do que a fé. Os votos que fazemos diante de Deus no batismo, casamento ou ordenação têm profundas implicações sociais. A confissão de que Jesus Cristo é o Filho de Deus encarnado, que morreu pelos nossos pecados, ressuscitou no terceiro dia e virá outra vez para estabelecer definitivamente seu reino de paz e justiça, tem profundas implicações sociais. Afirmar que a Bíblia é a Palavra de Deus e a revelação do seu amor e propósitos para a raça humana também tem profundas implicações sociais. Ser democrático é reconhecer o direito que todos têm de compartilhar o conhecimento, e isso inclui compartilhar as verdades redentoras do evangelho de Cristo. 

Não crer em Deus e não amá-lo de todo o coração e todo o entendimento conduz o ser humano a um estado de solidão e alienação no qual ele acaba perdendo os referenciais. Sem Deus, o homem é entregue a si mesmo e caminha, lentamente, para a escuridão da sua insensatez. Se o sentido da existência humana permanece trancado na jaula do individualismo, que esperança pode haver para a humanidade? O narcisismo individualista tem produzido seus próprios deuses, como Mamon, que inspira a ambição, ou Afrodite, que inspira a sensualidade. São deuses que nascem nas jaulas do individualismo. 

A cultura pós-moderna clama por um Redentor que a redima das armadilhas que ela mesma criou. Um Salvador que a salve dos desejos egoístas, cultivados na solidão ansiosa da privacidade, para uma vida de renúncia e doação. Um Libertador que a liberte da sedução de querer ser seu próprio Deus. Precisamos lutar por uma democracia que garanta a todos o direito de conhecer a verdade que liberta e por um cristianismo cheio de paixão por Deus e pelo ser humano, criado à sua imagem e semelhança. 


Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.

 

Ed. 302 - A maré evangélica
A maré evangélica mostra o crescimento sem precedentes dos movimentos evangélicos e, por outro lado, os fatores que impedem que esse crescimento seja eficaz na construção de uma sociedade melhor.

Período: Setembro-Outubro 2006
Páginas: 58

 

 

Colunas — O caminho do coração

Intimidade e libertação

Ricardo Barbosa de Sousa

Fala-se muito hoje em dia sobre intimidade. É a palavra da moda. Todos querem ser íntimos de Deus, do cônjuge, da namorada ou do amigo. Os programas de televisão e de rádio de maior audiência são aqueles que expõem a intimidade dos outros. As revistas de maior vendagem são aquelas que fofocam e comentam a intimidade de pessoas famosas. É comum ouvir nas ruas comentários sobre a vida íntima das celebridades, sobre suas casas, plásticas e relacionamentos, como se fossem velhas conhecidas. O sucesso do Big Brother está exatamente em expor a intimidade dos outros. Casais expõem-se na televisão. Todos querem mostrar o que são e o que pensam. Querem mostrar o corpo e a alma. Vivemos a era de Narciso.

Nas igrejas não é diferente. Boa parte das músicas que cantamos buscam promover uma adoração mais intimista. Cantamos essas músicas com um tom de voz bem diferente daquele que marcou os cânticos de guerra com suas melodias marciais. É preciso “sentir” a presença de Deus, repetir estrofes até que provoquem algum tipo de êxtase. Nas orações predominam os pronomes da primeira pessoa: meu, para mim. Tenho a impressão de que o conceito de intimidade vem adquirindo, cada vez mais, uma forte conotação sexual e intimista. Imagino que o “ficar”, no relacionamento avulso dos jovens e adolescentes pós-modernos, seja o comportamento que melhor descreve o significado de intimidade hoje. Algo passageiro, descomprometido, impessoal, intenso, egoísta e prazeroso. Certa vez ouvi alguém dizer que quando louva a Deus é como se estivesse “dançando com o rosto coladinho em Jesus”.

Estou casado há 28 anos e considero que minha esposa e eu conquistamos um razoável nível de intimidade, ao longo desse anos. Contudo, não consigo imaginar como seria nossa vida se vivêssemos o tempo todo trancados num quarto, trocando declarações apaixonadas, num êxtase interminável. Certamente não suportaríamos isso por muito tempo. A nossa intimidade envolve nossas diferenças e conflitos, longas conversas seguidas de silêncio. Envolve nossos filhos e amigos, alegrias e tristezas, sofrimentos e esperanças. Envolve responsabilidades e rotinas, trabalho e contas para pagar. É uma intimidade que tem seus momentos reservados, é claro, mas a maior parte do tempo ela é experimentada e vivida publicamente.
 
Tenho me preocupado com o modelo de espiritualidade intimista que vem sendo proposto, que, de certa forma, é uma versão religiosa do individualismo narcisista da cultura pós-moderna, uma versão religiosa do “ficar”. Ficamos com Deus em alguns momentos no culto, mas o que acontece antes ou depois dele não tem nada a ver com a intimidade. Ela só existe naquele momento, com aquelas sensações. É um modelo de intimidade e espiritualidade que não contempla a riqueza dinâmica da vida da fé. Seguir a Cristo no caminho do discipulado nos envolve numa espiritualidade cuja intimidade se dá num processo dinâmico de relacionamento, em que a confissão “Aba-Pai” acontece ao lado da confissão “Kyrios-Cristo”. Ambas dão o equilíbrio necessário a uma espiritualidade que é integral e pessoal, pública e privada, missionária e contemplativa.

A intimidade que Cristo nos propõe acontece num caminho e envolve todas as estações da vida. Ele nos chama para orar, mas também para lavar os pés uns dos outros. Ele nos chama para viver numa comunhão amorosa e segura com o Pai, mas também para confrontar os poderes que aprisionam e oprimem o ser humano. Ele nos chama para o silêncio e solitude, mas também para a proclamação profética e libertadora. É uma espiritualidade que precisa estar presente na economia e na política, na igreja e no quarto. O intimismo intoxica, a intimidade liberta. O intimismo é narcisista e exclusivista, a intimidade é pessoal e comunitária. A imitação de Cristo é o caminho mais seguro para uma intimidade libertadora.


Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.

 

 

 

 

 

 



     

Ed. 300 - Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas: tudo muito bonito e muito complicado
A matéria de capa traz uma análise do Conselho Mundial de Igrejas e aborda o desafio do diálogo ecumênico: intolerância, falta de amor, vaidade, comunhão, pregação... Existe um meio-termo?
Na seção No ventre da dor discute-se a epidemia de aids e a atitude da Igreja, que não pode deixar de se envolver com o sofrimento alheio

Período: Maio-Junho 2006
Páginas: 68